Abaixo segue o texto interessante que o prof. Carlos Alberto Faraco, em carta à
Ministra-Chefe da Casa Civil da Presidência da República, Gleisi
Hoffmann, diz por que é um erro prorrogar até 2016 o prazo de
implantação definitiva da ortografia prevista pelo Acordo Ortográfico de
1990.
(Documento encaminhado à Ministra-Chefe da Casa Civil da Presidência
da República, Gleisi Hoffmann. Ver nota de esclarecimento ao final)
De por que é um erro prorrogar até 2016 o prazo de
implantação definitiva da ortografia prevista pelo Acordo Ortográfico de
1990.
Carlos Alberto Faraco
(Universidade Federal do Paraná)
Fiz parte da Comissão de Língua Portuguesa do Ministério da Educação
(COLIP – MEC) que assessorou o governo federal em 2008 no processo de
implantação do Acordo Ortográfico de 1990 no Brasil. Por isso, tomo a
liberdade de enviar este arrazoado na esperança de convencer a ministra
Gleisi Hoffmann do equívoco e do erro grave que será a edição do novo
decreto presidencial (anunciado recentemente pela imprensa), prorrogando
a vigência definitiva da ortografia do Acordo para 2016. E me coloco
inteiramente à disposição para qualquer esclarecimento que ainda se faça
necessário.
Quando a COLIP foi convocada pelo ministro da Educação para
assessorar o governo federal no processo de implantação das novas normas
ortográficas, ela não podia, obviamente, entrar no mérito dos termos do
Acordo visto que este é um tratado internacional assinado em 1990 pelos
países de língua oficial portuguesa e foi devidamente ratificado pelo
nosso Congresso Nacional em 2004. Assim, coube à Comissão apenas a
tarefa de sugerir o melhor caminho a ser seguido no processo de inclusão
do Acordo na ordem jurídica nacional por ato do presidente da
República.
A COLIP, depois de ponderar as diversas questões técnicas, políticas e
econômicas relacionadas ao tema, propôs um período de quatro anos de
transição ao fim do qual se implantariam definitivamente as normas
ortográficas estipuladas pelo Acordo.
Tendo por base os estudos e sugestões da Comissão, o presidente da
República assinou, em 29/9/2008, os Decretos n. 6.583, n. 6.584 e n.
6.585, determinando a vigência do Acordo a partir de 01/01/2009, com um
período de transição de quatro anos – que vence no dia 31 de dezembro de
2012 – durante o qual coexistiriam a norma ortográfica fixada em 1943 e
a nova norma ortográfica definida pelo Acordo de 1990.
A Comissão – composta por professores universitários da área de
Linguística e Língua Portuguesa, por um representante do Ministério das
Relações Exteriores e por um representante da Academia Brasileira de
Letras – tomou por base os seguintes parâmetros:
1 – o Brasil, por sua iniciativa político-diplomática, havia
conseguido, no período 2005-2008, que se concretizassem as exigências
para que o Acordo Ortográfico entrasse em vigor (a ratificação de pelo
menos três dos signatários). Em abril de 2008, a Assembleia Nacional
Portuguesa ratificou o Acordo, somando-se ao Brasil, a Cabo Verde, a São
Tomé e Príncipe e ao Timor-Leste. Diante disso, era fundamental que, do
ponto de vista político, o nosso país inserisse os termos do Acordo na
ordem jurídica nacional e definisse o cronograma para sua implantação. E
isso foi feito pelos Decretos presidenciais já mencionados. Desse modo,
o Brasil sinalizou seu efetivo compromisso com o Acordo, reforçou sua
vitoriosa iniciativa diplomática (cujo pano de fundo é ampliar a
presença do português como língua oficial de organismos internacionais,
bem como estimular sua difusão como língua internacional) e consolidou o
papel de liderança que merece ocupar no espaço lusófono por ser o maior
país de língua portuguesa do mundo;
2 – o compromisso da Academia Brasileira de Letras de publicar, no
mais curto espaço de tempo (e dentro ainda da delegação de competência
que, desde a década de 1930, recebeu do Estado brasileiro em matéria
ortográfica), a nova edição do seu Vocabulário Ortográfico da Língua
Portuguesa (VOLP) adaptado às normas definidas pelo Acordo. Isso era
indispensável para que o Brasil dispusesse de um instrumento técnico
seguro de referência da nova ortografia. A 5a. edição do VOLP foi publicada já em 2009;
3 – a importância de que o cronograma de implantação coincidisse com o
calendário do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) – o maior
programa editorial do país e um dos maiores do mundo – de modo a não
haver qualquer gasto desnecessário e eventuais prejuízos financeiros
para o governo federal. Os quatro anos previstos a partir justamente de
2009 atenderam precisamente a este aspecto;
4 – tendo em vista que as mudanças ortográficas estipuladas pelo
Acordo são, para nós brasileiros, de pequena monta, considerou-se que o
tempo de quatro anos, além de não entrar em conflito com o calendário do
PNLD, seria suficiente para sedimentar a nova memória ortográfica entre
a população.
E isso foi facilitado por quatro fatos:
a) toda a imprensa brasileira adotou as novas normas ortográficas já em 01/01/2009;
b) as editoras brasileiras começaram a publicar seus novos livros com a nova ortografia já em 2009;
c) as secretaria estaduais e municipais de educação, as editoras e a
mídia em geral divulgaram amplamente a nova ortografia de modo que os
professores puderam trabalhar com ela já a partir do ano letivo de 2009;
d) todos os novos livros que chegaram às escolas pelo PNLD a partir
de 2010 incorporaram – por exigência dos editais – a nova ortografia.
Como resultado, pode-se dizer com toda a segurança que hoje a
população em geral já não tem mais a memória das normas ortográficas
anteriores.
Apesar disso tudo, alguns poucos desavisados vêm tentando tumultuar
um processo que foi exemplar (o Brasil tem servido de modelo para os
demais países de língua oficial portuguesa) e de total sucesso (não há
qualquer dúvida de que a nova ortografia está implantada no Brasil).
Trata-se de alguns defensores de ideias mirabolantes – que são
tecnicamente incorretas e politicamente equivocadas – que vêm
inescrupulosamente tentando ganhar visibilidade. Não contam com nenhum
respaldo da comunidade acadêmica de Linguística e Língua Portuguesa
(embora sejam, algumas vezes, apresentados pela imprensa como
“importantes linguistas brasileiros”) pelo simples fato de revelarem, em
suas manifestações, um total desconhecimento da história da nossa
ortografia e de seus complexos aspectos técnicos.
Tentaram, sem qualquer sucesso, ganhar espaço para suas ideias no I
Congresso Internacional sobre a Situação do Português no Sistema Global,
organizado pela Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) e
realizado em Brasília em março de 2010.
Sem conseguirem convencer a comunidade acadêmica brasileira e as
delegações reunidas no I Congresso, entraram, então, com uma ação
popular contra a Academia Brasileira de Letras, alegando que, na
publicação da 5a. edição do VOLP, ela havia ido além do que estipulava o Acordo, em especial quanto ao uso do hífen.
Essa é uma alegação totalmente falsa porque as normas do Acordo foram
seguidas na atualização do VOLP e, onde havia lacunas, a Academia, por
meio de sua Comissão Lexicográfica, apenas manteve a tradição
ortográfica, considerando que o Acordo não eliminou essa tradição (nem
poderia, já que a ortografia é fixada num longo, lento e cuidadoso
processo histórico).
Por fim, esses mesmos desavisados buscaram sensibilizar, com seus
falsos argumentos, alguns senadores tentando conseguir que a implantação
do Acordo, conforme prevista pelos decretos presidenciais, fosse
suspensa por iniciativa legislativa. Infelizmente, conseguiram algum
sucesso nesta seara: a Comissão de Educação do Senado acabou por
promover uma audiência aberta sobre o Acordo em abril de 2012.
Surpreendentemente, a Comissão de Educação não convidou nenhum dos
membros da Comissão do MEC que assessorou o governo em 2008 e ninguém da
Academia Brasileira de Letras que, por lei, é responsável pela
publicação do VOLP. Pelo que pude ler na matéria do site do
Senado na ocasião, estiveram na audiência pessoas muito desinformadas
que fizeram afirmações improcedentes (por exemplo, de que o Acordo ainda
não está em vigor em Portugal – o que é totalmente falso; ou de que a
Academia extrapolou as normas do Acordo – o que é igualmente falso, como
mostramos acima). Foi, para dizer o mínimo, uma situação lastimável e
muito preocupante: não é preciso ir longe para saber que, numa área tão
complexa técnica e politicamente como a da ortografia, qualquer
decisão, decorrente da desinformação será desastrosa.
Pois bem, nas últimas semanas li na imprensa que a ministra Gleisi
Hoffmann, convencida por alguns senadores, vai encaminhar à presidente
da República a sugestão de que seja prorrogado até 2016 o período de
transição, postergando a implantação definitiva do Acordo no Brasil.
Se isso se concretizar, será um grande erro político do governo, com repercussões imprevisíveis, já que:
1 – uma tal prorrogação instaura um clima de incerteza e
intranquilidade no espaço lusófono porque a medida será certamente lida
como um sinal de que o Brasil está voltando atrás na matéria, o que
levanta o fantasma de que o nosso país vai abandonar o Acordo (o que
seria, claro, um total despropósito, considerando os custos econômicos
de sua implantação desde 2009);
2 – tira do Brasil o papel de liderança que conquistou, no espaço
lusófono, pelo modo cuidado e ponderado com que conduziu essa questão
desde 2005;
3 – instaura, como deixou clara recente manifestação da presidente
da Academia Brasileira de Letras pela imprensa, um clima de incerteza e
intranquilidade entre as editoras brasileiras que investiram não poucos
recursos para implantar a nova ortografia em suas edições desde 2009;
4 – desconsidera a comunidade acadêmica de Linguística e Língua
Portuguesa do Brasil em favor de quem não tem nem competência técnica
nem respaldo político.
Por fim, vale fazer referência à situação de Portugal que alguns
trazem à baila para justificar seus falsos argumentos. Lá o governo sim
pôs a ortografia do Acordo em vigor por Resolução do Conselho de
Ministros de 09/12/2010, a partir de 01/01/2011 no âmbito da
administração pública e, no sistema escolar, a partir do ano letivo
2011-2012. E estipulou um prazo de transição de seis anos.
Esse prazo maior é plenamente justificável: primeiro porque as
mudanças são maiores e mais salientes lá do que aqui; segundo, porque,
seguindo o exemplo do Brasil, Portugal também fez coincidir a
implantação da nova ortografia no sistema escolar com o calendário do
seu Programa Nacional do Livro Didático. Em razão das características do
Programa português, o tempo lá tem de ser necessariamente mais longo:
enquanto o nosso PNLD se faz por ciclos escolares (e, portanto, se
completa em três anos), o português se faz por blocos de matérias (e se
completa em tempo maior).
Curitiba, 19 de dezembro de 2012.
(dia do Centenário da Universidade Federal do Paraná)